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“Memórias do JA” – O BAILE DOS 10 MAIS

por Haroldo Flávio Carlos (Lampião)

Nasci e cresci em Araraquara. Aos 22 anos, quando fui aprovado no vestibular de Engenharia, mudei para São Carlos, onde morei no alojamento da Escola de Engenharia (EESC-USP). Como muitos jovens na mesma condição, ao concluir a faculdade saí em busca de trabalho – e acabei me mudando para Campinas, onde resido até hoje.
Sempre que possível, nos finais de semana, volto para Araraquara para visitar minha família. Numa dessas ocasiões, já estava na casa da minha mãe, na Rua 10, no Carmo, com o “som caseiro” ligado, violão em punho, na área dos fundos, quando o interfone tocou:

– Aqui é o Zé Neguinho, quero falar com o Haroldo.

Corri para a frente da casa e lá estava ele, com aquele sorriso largo de sempre, radiante – tipo dentes de marfim – esbanjando simpatia. Nos abraçamos e, a partir de então, naquela manhã rolou muita música e muito papo sobre a nossa juventude: as brincadeiras dançantes, os bailes no asilo de mendicidade com “Os Bruxos”, “O Grupo 05”, as brigas nas portarias dos clubes que tentavam proibir a entrada do Zé porque ele era negro, o Ginásio do Carmo, o Colégio da Vila… mas, principalmente, falamos do Baile dos 10 Mais.

O Zé começou dizendo que, há alguns dias, havia se encontrado com a Regina Ramos e que ela tinha confessado que ele fora, sim, o mais elegante do Baile dos 10 Mais. Mas, porque estava namorando o Bianca, ela votou nele – e seu voto acabou influenciando os votos das outras meninas do júri, que formaram maioria e se decidiram pelo Bianca!

Como surgiu a ideia do Baile dos 10 Mais

Eu nasci e cresci no Bairro do Carmo, porém, ao concluir o ginásio no “Vitão”, não tinha alternativa: ou ia para o Colégio da Vila, ou para o IEBA, porque o Vitão formava alunos somente até a oitava série do ginasial. Minha opção foi pelo colegial na Vila, onde estudei no período noturno e conheci amigos cujas amizades permanecem até hoje.

Nós ficávamos sempre no fundo da sala de aula, razão pela qual organizamos um grupo – com carteirinha e tudo mais – chamado “FUNDÃO KENT CLUB”. Faziam parte do FUNDÃO: Felizatti, Grosso, Esquerdinha, Cebolão, Boralli, Ardeu, Otoniel e eu.

Com a ajuda desses amigos, criamos a LOVE – Legião Organizadora da Vontade Estudantil – e vencemos as eleições para o Centro Cívico do Colégio da Vila. (Durante a ditadura militar, os grêmios estudantis foram extintos. Em substituição, foram criados os Centros Cívicos, os quais, de acordo com as orientações do regime militar, tinham que ser guiados pelo “CIVISMO”).

Na época, em 1972, estávamos no auge da ditadura militar e não havia espaço para atuações políticas. A repressão era violenta e nossa missão era, principalmente, arrecadar fundos para o Centro Cívico, que pudessem ser revertidos em auxílio ao colégio (compra de instrumentos musicais para a fanfarra, uniformes para os times da escola, livros para biblioteca, etc.).

As fontes de renda das agremiações estudantis eram três: a taxa das carteirinhas – com as quais o estudante pagava “meia” no cinema, excursões, bailes e brincadeiras dançantes. Após a arrecadação das carteirinhas, que ocorria sempre no início do ano letivo, fizemos uma excursão a Santos, na qual tivemos prejuízo.

Pensamos então em fazer um baile, porém as chances de sucesso sempre eram duvidosas: dia chuvoso, outros eventos no mesmo dia ou até mesmo a indiferença do público-alvo. Foi quando a professora Maria Alice deu a ideia: um concurso de miss seguido de um baile. O Colégio da Vila estava cheio de meninas lindas e ela tinha uma amiga que havia sido Miss Brasil e poderia fazer parte do júri.

Este evento foi feito no clube Palmeirinha — e foi a maior bilheteria que já aconteceu na história da Vila Xavier. Colocamos, neste dia, em torno de 2.000 pessoas. Tinha gente dentro do salão, fora do salão e até na rua. Os Bruxos tocaram nesta noite e os apresentadores do concurso foram Ivan Roberto Peroni e Cleonice Meireles.

O auge: o desfile dos 10 Mais

Após esse sucesso, ficamos mais audaciosos. Juntando isso à nossa vontade de “transgredir”, tivemos uma ideia: fazer um concurso de elegância masculina, também seguido de baile. Era bilheteria na certa, porém os obstáculos eram muitos! Começando pela dificuldade de encontrar pessoas na cidade que tivessem a coragem de desfilar. Araraquara sempre foi uma cidade de valores ultraconservadores.

Nenhum clube da cidade alugou espaço para este evento. Disfarçadamente todos inventavam uma desculpa, mas no fundo não queriam se envolver com a ideia. Finalmente alugamos o salão de festa do Asilo de Mendicidade.

Contratamos banda (grupo 05) e começamos a divulgar o evento. Nesta altura, a diretora do Colégio da Vila, professora Davina, me chamou na Diretoria e foi taxativa: BAILE DE VIADO COM O NOME DO COLÉGIO DA VILA NÃO VAI TER, ACABE COM ISTO JÁ! Fiquei revoltado com a atitude dela, pois já havia assinado os contratos com o empresário do Grupo 05 e com a administração do Asilo, não dava mais para retroceder! Então criei coragem e respondi a ela na mesma altura: O CENTRO CÍVIO DO COLÉGIO DA VILA NÃO FAZ, MAS O FUNDO KENT FAZ! Com o apoio dos meus irmãos Assis, Benê, Zé Roberto e Ariovaldo mais os amigos do FUNDÃO DO KENT seguimos em frente e o evento foi realizado.

Como em todo concurso, aconteceu o desfile geral e, na sequência, desfilaram apenas os dez mais elegantes, uma das maiores dificuldades foi encontrá-los em uma época de extremismos, preconceitos e repressão, ainda mais para encontrar 10 jovens que desfilassem sem ser pagos.

Não tenho certeza de quem foram os 10 personagens Mais Elegantes. Na minha memória foram: o Zé Neguinho, Bianca, Mauro, Esquerdinha, Gilmar, Arlindo, Gê, Jorge, Micelli e Aldo Perpétuo.

Nesta fase, tivemos o ponto alto da noite, um momento inesquecível: o Zé Neguinho combinou com alguém que tinha acesso aos disjuntores do salão um apagão da iluminação geral, exclusivamente no momento em que ele subisse na passarela. Durante esses momentos de escuridão, ele repetidamente acendia e apagava um isqueiro enquanto desfilava — aparecendo e desaparecendo na escuridão.

A plateia ficou maravilhada com aquele efeito que destacava a calça de tergal branco e, principalmente, aquele sorriso, aquela ginga de sambista e aquele charme irresistível. Depois disso, para todos, o vencedor se chamava ZÉ NEGUINHO.

Porém, o júri decidiu que o troféu era do Bianca, ficando o Zé em segundo lugar.

Na realidade, não tem importância quem ganhou e quem perdeu. O importante mesmo foi a participação de todos e a coragem que tivemos para desafiar o status quo da sociedade daquela época – extremamente conservadora e preconceituosa.

De alguma forma, algumas sementes foram plantadas naquele dia e, com certeza, produzem em todos nós frutos até hoje: AMIZADE, COMPANHEIRISMO e COMPROMETIMENTO!

Esta crônica foi feita em homenagem aos 10 Mais Elegantes. A todos, em especial ao Zé Neguinho, meu abraço fraternal.

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