Ele não era turco não

Luiz Carlos Bedran

Terminou a visita do papa Bento XVI à Turquia, que, a pretexto de prestigiar a comunidade católica lá radicada, de apenas 32 mil fiéis, tentou amenizar as infelizes declarações que proferiu recentemente sobre o Islã e que não foram, como muitos supõem, fruto de distração alguma, e que provocou a ira de milhões de muçulmanos. Ao mesmo tempo procurou manter um diálogo com a comunidade ortodoxa cristã, separada da Igreja Católica desde o Grande Cisma de 1054.

Por sua vez o governo turco, para demonstrar sua hospitalidade, típica dos muçulmanos, recebeu o papa com todas as honras que merece um chefe de Estado, mais ainda como o representante máximo da Igreja Católica. Entretanto, subjacente a isso tudo, está o interesse do Estado turco em pertencer à União Européia – facilitado pela sua localização, fronteira à Europa, no Mar Mediterrâneo – e, assim procurar desenvolver-se economicamente.

Não será fácil à Turquia conseguir o que pretende, pois está enraizado há séculos, no espírito dos europeus e na chamada civilização ocidental cristã, um verdadeiro pavor contra os turcos, não só porque eles conquistaram Constantinopla em 1453 e subjugaram os cristãos ortodoxos, como também porque quase que chegaram a entrar em Viena, na Áustria, em pleno coração da Europa.

E isso após ter dominado a Hungria, a península balcânica, a Bulgária, a Albânia, a antiga Iugoslávia, a Grécia; na África, a Argélia e a Tunísia e no Oriente Médio, a Síria, o Iraque, a Armênia, entre outros países e enclaves étnicos. Esse era o vasto e poderoso Império Otomano, que dominou meio mundo e só terminou quando, aliado dos alemães na Primeira Guerra Mundial, estes perderam a guerra.

O medo que incutiam nos ocidentais, a proverbial ferocidade de suas tropas ainda hoje perdura na mente das pessoas, não só porque, muçulmanos, eram contra os cristãos, mas também porque, ainda hoje, o mundo não se esqueceu do primeiro genocídio ocorrido no século passado, em 1915, quando os turcos massacraram mais de um milhão de armênios.

E a comunidade armênia não se esqueceu disso, tanto que continua a fazer pressão, principalmente na França, onde é numerosa, exigindo a condição – para que a Turquia possa fazer parte da União Européia – que ela reconheça formal e moralmente aquele genocídio o que, evidentemente, implicaria em inúmeras conseqüências, além das políticas.

No Brasil mesmo, ainda hoje permanece essa profunda ojeriza contra os turcos. Quando os libaneses cristãos, no início do século passado, vieram ao Brasil, fugindo da miséria, das guerras e da opressão dos muçulmanos, foram menosprezados, ridicularizados e alvo dos mais diversos preconceitos pelos brasileiros. Diziam até que eles comiam crianças!

Mas explica-se essa errônea identificação entre libaneses, turcos e sírios. É que no começo do século passado, o Líbano, bem como a Síria, faziam parte do Império Otomano. E para que os libaneses e sírios pudessem emigrar, necessitavam obter passaportes, que eram emitidos pelo Império Otomano, em língua francesa, a da diplomacia da época.

Como o do meu avô libanês, Kalil Ibrahim Bedran, onde está lá registrado: “Certificat de Nationalité Ottomane. Nous, Cônsul General de Turquie à Bresil, vu lês articles, 51,55 et 62 des Instructions Consulaires, Section II, certifions que le nommé, M. Kalil Ibrahim Bedran, naturel de Vadi-Chahour – Liban, exerçant la profesion de negociant à Bragança, E. de São Paulo, inscrit comme Sujet Ottoman sur de folio 45 du registre matricule de notre Chancellerie. Delivré à São Paulo, le 6 Novembre 1912. Le Consul General, Munir Sureya”. E, ao lado, consta que ele tinha 27 anos e era da religião maronita.

Assim, os imigrantes libaneses e sírios no início do século passado levaram a fama de turcos, em seu sentido mais pejorativo. Embora ainda existam preconceitos, principalmente por parte das pessoas antigas e incultas, hoje, depois de muito tempo e de muita luta, para justificar que os “batrícios não comem crianças”, eles fizeram por merecer a confiança, o carinho e a amizade dos brasileiros, porque aqui elegeram o Brasil, com muito orgulho, inclusive de seus descendentes, a sua querida segunda pátria. Aliás, de sentido pejorativo, inicialmente, turco, “turquinho”, transformou-se, pelo espírito cordial do brasileiro, no sentido afetivo, carinhoso. Mas, a bem da verdade, meu avô não era turco não.

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