Crime e Castigo

João Baptista Galhardo (*)

Quando respondia, também, pelas Escrivanias do Júri (julgamentos de crimes contra a vida) e da Corregedoria Permanente (com visitas inclusive aos presídios), anexos do Registro Imobiliário, eu tinha muito contato com presos recolhidos à cadeia pública e ainda com aqueles que obtinham o livramento condicional depois do cumprimento bem comportado de boa parte da pena. No fim de cada mês os que estavam em liberdade condicional se apresentavam obrigatoriamente no Fórum para visto em sua carteira de liberado, quando informavam mudança ou manutenção de endereço, bem como atual ocupação e o local de trabalho. Nessas oportunidades conversávamos sobre muita coisa.

Um senhor de meia idade cumpriu pena por ter separado do corpo, com uma foice, a cabeça de sua da mulher. Se vestisse como gargantilha um colarinho romano, passaria por um pregador da Bíblia, dada sua boa feição de inocência. Educado e de boa aparência, contava com detalhes como cometera o crime.

Outro que havia matado o irmão porque este lhe negara um pedaço de pão. Afável e gentil, cada vez que se apresentava levava um bolo ou um doce para os funcionários.

Havia um loiro, cabelos cacheados, face de querubim, que fora condenado por ter estuprado e sufocado com areia a própria cunhada, irmã de sua esposa com os quais vivia a vítima. Uma educação requintada. "Sim senhor, pois não, bom dia, obrigado, até logo".

Até velhinho

De chapéu enterrado na cabeça, com fisionomia de anjo, condenado por ter tentado matar a própria filha que lhe negou relação sexual.

Todos e muitos outros com caras de santo. O interessante é que nenhum demonstrava arrependimento ou remorso. Se "orgulhavam" de ter pago com a pena o crime cometido.

Por outro lado em alguns finais de julgamentos pelo Júri, percebia que muitos acusados ficavam mais tristes do que contentes pela absolvição alcançada. Porque já estavam sofrendo a punição imposta em razão do sentimento de culpa, que seria amortecido se condenados fossem.

Na realidade cada um carrega consigo mais de uma personalidade.

Como sugere Luigi Pirandello, escritor italiano que viveu 67 anos até 1936, em seu livro "Um, Ninguém e Cem Mil" (Uno, nessuno e centomila), somos tantos quanto os olhos que nos olham. Numa reunião de A, B e C, não são três pessoas que se encontram, mas sim nove, uma vez que: A tem uma imagem de B, C e de si próprio diferentes das que tem B de A, de C e de si próprio, por sua vez contrária das que tem C de A, de B e de si próprio. Instala-se aparentemente uma confusão, mas é por aí que se tenta explicar a múltipla personalidade de cada um.

Início da punição

Pode o dissimulado cometer o crime pelas mãos, palavra ou pela escrita sem qualquer vestígio ou prova. Todavia o castigo começa no momento da ação praticada.

Pode faltar evidência material, mas a punição (pena) se agarra na alma do homem desde o momento em que comete o crime. Mesmo que tenha acobertado, disfarçado e fingido com lágrimas de crocodilo.

O suicídio de Judas começou no momento em que traiu Jesus. Culminou com o laço no pescoço.

Depois do crime poderá vir o arrependimento que não é o mesmo que remorso. Arrependimento quer dizer mudança de atitude. Comportamento contrário àquele tomado anteriormente. Sentimento de rejeição sincera ao procedimento pregresso.

No remorso a pessoa não se arrepende, mas procura infligir, prescrever a si mesmo algum tipo de castigo, suicídio ou autoflagelação até a morte. Tem medo do espelho que lhe mostra a verdade. Olha para ele longe da claridade.

Crime e remorso são causa e efeito.

Cada um carrega dentro de si o Supremo Tribunal de olhar cruel, reto, sereno e agudo: a CONSCIÊNCIA que é ao mesmo tempo o juiz e a prova, a lei e a acusação. E ainda, a testemunha incorruptível. O remorso mata sem matar e às vezes supre a justiça. E quantos neste momento, por terem se livrado do processo, por simulação convincente, hipocrisia, falsidade, álibi, ardil ou trapaça, não estarão pedindo para a consciência deixá-los por uns instantes: – vai embora. Eu odeio tua face austera. O teu olhar me atormenta. Deixe-me em paz. Você me enlouquece…

A vida não é uma farsa. Nem uma tragédia ou pergunta a ser respondida. É mistério sim. Mistério para ser vivido com AMOR, o único ingrediente capaz de estabelecer um bom relacionamento com a consciência.

O homem, em regra, está sempre acompanhado de vários dele mesmo. Realmente, pode ser um, cem mil ou ninguém.

(*) jbgalhardo@uol.com.br

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