Rose Marie Muraro
Vamos ver se, no segundo mandato, Lula tem coragem de tomar medidas concretas contra as injustiças do sistema neoliberal
ESPANTOSAMENTE o povo brasileiro rejeitou os argumentos moralistas dos partidos de oposição a respeito do presidente da República. Como disse em meu artigo “Moral?”, publicado nesta Folha em 12/9, o povo brasileiro é basicamente honesto no que se refere à sua vida pessoal, mas é cético em relação aos problemas que envolvem dinheiro público. Sabe que é manipulado pelos donos do poder.
O mais incrível é que não caiu no jogo da grande mídia (toda ela), que, compreensivelmente, defende seus próprios interesses. A mídia abre e fecha os caminhos da informação de acordo com o que lhe interessa. No mundo inteiro, não há mídia isenta.
Naquele artigo, o que ficou dúbio é que afirmei que a moral dos oprimidos legitima a imoralidade radical do sistema neoliberal. Por sua vez, evidentemente, a imoralidade de qualquer pessoa, seja ela opressora ou oprimida, também legitima essa mesma imoralidade. Aparentemente não há saída. Mas a saída existe, sim. É uma espécie de volta por cima, que é a luta concreta contra a injustiça. Só essa luta pode mexer fundo no sistema neoliberal. Vou dar alguns exemplos.
No governo Lula, segundo o IBGE, o índice de Gini baixou de 0,57 para 0,53, o que denota, pela primeira vez nos últimos 50 anos, uma diminuição da desigualdade social no Brasil.
Um outro exemplo (que ainda não foi implementado) é o problema da Previdência Social. Segundo o próprio Lula no debate de 27/10, foi usada pelos sucessivos governos uma enorme quantidade de dinheiro da Previdência Social, no tempo em que havia muitos contribuintes e poucos aposentados, para construir grandes obras, como Brasília, Itaipu, Transamazônica, ponte Rio-Niterói etc. Até hoje esse dinheiro não foi reposto.
Ao que parece, a atual reforma da Previdência (a ser feita pelo mesmo Lula) visa jogar sobre os trabalhadores e os aposentados um déficit de R$ 64 bilhões, o qual já teria sido pago muitas vezes se o dinheiro “desviado” da Previdência nos últimos 40 ou 50 anos tivesse sido devolvido a seus verdadeiros donos, os trabalhadores. Esse é um ato imoral e até iníquo.
Na mesma linha, há uma sugestão que não é nova: descontar do faturamento de cada firma, e não da sua folha de pagamentos, a contribuição previdenciária. Isso colocaria nos ombros das empresas que substituíram seus operários por robôs ou sistemas automatizados aquilo que pertence por direito aos operários despedidos. Assim, esse dinheiro que fica no bolso dos donos dessas empresas voltaria, numa parcela mínima, para seus reais proprietários, os trabalhadores e aposentados. E, facilmente, não só cobriria o déficit como também traria a possibilidade de dar salário mínimo e benefícios sociais menos indecentes que os de agora.
Vale lembrar que, nos anos 50, com um salário mínimo, um pai conseguia sustentar seis filhos e fazê-los estudar em boas escolas públicas. O arrocho salarial começa nos governos militares, durante o “milagre brasileiro”. O bolo vem crescendo, e nada de redistribuição. Sei que um segundo mandato de Lula será extraordinariamente difícil.
Mas penso que a sucessão de escândalos que vieram à tona nas últimas fases de seu governo -e que não apareciam nos anteriores, porque a mídia como um todo os abafava- vem trazer uma nova dimensão à democracia. Não os escândalos, mas a sua publicidade. É isto que faz Lula diferente dos outros presidentes: ele tem tudo contra si, menos o povo brasileiro, que vê sua vida melhorando. O sistema produtivo está quebrado, tanto o industrial quanto o agrícola, por causa dos juros altos e do câmbio baixo. Isso é uma política imoral porque é excludente. Uma política inclusiva necessitaria de juros baixos, para propiciar mais investimentos, e câmbio mais alto, para aumentar as exportações.
Só com essas medidas aumentariam os empregos e a renda dos que têm menores salários; inclusive da classe média, hoje totalmente arrochada. Os muito ricos e os muito pobres tiveram vantagens no primeiro mandato. Vamos ver se, no segundo, Lula tem coragem de tomar medidas concretas contra as injustiças do sistema neoliberal, que ele, pelo visto, está abraçando em parte.
Lula precisa ter forças para transgredir a moral econômica hipócrita. Se não o fizer, terá perdido a grande oportunidade histórica que o povo brasileiro está lhe dando, e o Brasil entrará num retrocesso que não terá volta.
ROSE MARIE MURARO, 75, formada em física e em economia, é editora, escritora e membro fundadora do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.