A indignação

Denis Lerrer Rosenfield

Os que defendem os “erros” cometidos pelo governo Lula e pelo PT estão, de fato, abandonando o próprio exercício do pensamento

UM PAÍS que perde a capacidade de indignar-se arrisca a sua própria existência política. A moral não é um utensílio qualquer que possa ser utilizado segundo as conveniências partidárias. Ela é uma finalidade em si mesma que, instrumentalizada, perde seu próprio significado. A política se mostra como uma forma superior de sociabilidade humana se tiver um comprometimento com princípios morais e com a verdade, sem os quais as relações humanas abandonam sua própria dimensão cívica, a que se realiza pelo exercício dos mais diferentes tipos de direito.

O país cresceu nas últimas décadas pelo desenvolvimento e pelo aperfeiçoamento da cena pública. A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral propiciou uma nova configuração da opinião pública, atenta ao comportamento de seus dirigentes. Líderes partidários e governantes tiveram de responder por suas ações e de se responsabilizar pelo que faziam. Políticos que baseavam suas ações em máximas do tipo “é dando que se recebe” ou “rouba, mas faz” perderam progressivamente credibilidade e foram sendo abandonados pelos eleitores.

Parecia que o país tinha ingressado em um distinto e superior patamar político. Um presidente da República chegou a ser afastado do seu cargo por corrupção e por infrações à moralidade pública em manifestações que tomavam conta das ruas deste país.

Nos escândalos que dominaram a cena do governo Lula, as ruas permaneceram vazias. As vozes, dificilmente audíveis, começaram a se calar, como se a perplexidade tivesse tomado o lugar da indignação. É como se as seguintes perguntas martelassem as cabeças: “O que fez com que o partido da ética a infringisse tão duramente?”; “Era tudo uma mera encenação de um partido oposicionista?”.

A única resposta a essas perguntas veio sob a forma do “errar é humano” para justificar a corrupção e a falta de ética na política. É como se uma “nova teoria” estivesse nascendo das cinzas da moralidade, a de que “erros” justificam todo tipo de ação.

Ora, uma “teoria dos erros”, cuja finalidade consistia apenas em acobertar a verdade, só podia se traduzir por uma valorização da “mentira” como forma de governo. O seu rebento é o “direito de mentir”. Triste fim dos que se diziam defensores da moralidade, embora tenham com isso aferido “belos” resultados eleitorais.

Acontece que a beleza e a eticidade desapareceram em proveito de uma grande enganação pública. Criticar, porém, é preciso. Uma cena pública que perde seus parâmetros começa a se desestruturar. Entra-se no lugar do vale-tudo em que a verdade e a moralidade são as primeiras vítimas.

O mundo do vale-tudo é o mundo dos heróis sem caráter, que aproveitam as mínimas circunstâncias em proveito próprio. O tesouro público se torna privado ou privado-partidário, como se a República, a coisa pública, a coisa de todos nós e os recursos dos contribuintes pudessem ser dilapidados à vontade. Sempre explicações e justificativas serão apresentadas, algumas adornadas de belas expressões, como se um novo mundo estivesse sendo construído, um novo mundo possível, só que este surge sob a forma da usurpação e da perversão.

O exemplo que está agora sendo vendido ao país é o de que o crime compensa, toda regra e toda norma podendo ser transgredidas.

Tudo depende da “teoria do erro”, chave mestra que procura colocar aquele que o cometeu na posição de vítima, de agente involuntário, injustamente acusado pelos malfeitores da imprensa, uma imprensa que não saberia investigar corretamente, porque não segue os ditames do partido no poder. De reveladora de fatos, ela se torna ré de um mau exercício da liberdade. De pequenos passos se constitui uma mentalidade e um uso autoritário do poder.

Quem defende a imoralidade, quem a justifica, a trai. Defende, na verdade, a asfixia da cena pública, a asfixia lenta e gradual das liberdades democráticas. O comprometimento do pensamento é com a faculdade de julgar, de emitir juízos sobre fatos e comportamentos que atentam contra princípios morais, contra a verdade e contra tudo aquilo que baliza as instituições republicanas.

Os que defendem os “erros” cometidos pelo governo Lula e pelo PT estão, de fato, abandonando o próprio exercício do pensamento, que não pode se tornar refém da servidão política -aqui, uma espécie de servidão voluntária. Se a “causa” toma o lugar da verdade e da liberdade, muito pouco se pode esperar da reflexão, da crítica. Lula ganhou, a ética e a verdade perderam.

DENIS LERRER ROSENFIELD, 55, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista “Filosofia Política”. É autor de “Política e Liberdade em Hegel” (Ática, 1995), entre outros livros.

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