João Baptista Galhardo
Não é de hoje que a formiga símbolo da previdência sábia, em virtude de sua farta provisão armazenada para o inverno, sofre com a inveja, injúrias e zombarias de desidiosos, vagabundos e preguiçosos. Todos conhecem os dissabores que ela passou com a tagarela cigarra cantante. Primeiro por pedir no inverno o que a formiga amealhou em todas as outras estações e, segundo, quando ficou sabendo que ela, sem qualquer esforço, pelo menos penoso, deu a volta por cima e acabou como cantora e bailarina de cancã em Paris, oportunidade em que a formiga mandou La Fontaine para os quinto dos infernos.
Tempos depois veio a mosca molestar a coitada da trabalhadora exemplar:
– Você é uma idiota, trabalhando noite e dia provisando para o inverno. Eu não trabalho. Vivo planando nos melhores castelos, saboreando o que há de bom sem nenhum esforço, enquanto você alcança apenas migalhas que chegam ao chão.
– Fique sabendo mosca intrometida, eu gosto de trabalhar. Pelo menos tenho o meu teto construído com o meu suor. Não passo frio nem fome quando chegar o inverno porque sou prudente e precavida. Minha vida é honesta.
Quando o frio chegou, a mosca, como a cigarra anteriormente, procurou se aquecer na toca da formiga sendo, de lá, colocada para fora. E para se vingar da formiga a voadora espalhou para todos os bichos que era uma injustiça ela estar aquecida no seu lar não se importando com os que passam frio e fome.
Dizem agora que a mosca fez a cabeça do gafanhoto que desde o velho testamento é tido e havido como uma praga. Aliás, a visão do gafanhoto no Apocalipse é interpretada como símbolo dos hereges ou como visão dos poderes demoníacos.
Maltrapilho para chamar a atenção de todos, o gafanhoto postou-se na frente da casa da formiga e a mosca atraiu grande público. Montou palanque:
– Olhem só este coitado do gafanhoto, com frio e com fome e lá dentro bem quentinha e com comida sobrando está a formiga sem qualquer compaixão.
A ninguém interessava lembrar que a formiga trabalhara duro, de sol a sol, construindo sua toca e acumulando suprimento para o longo inverno que chegara. E o gafanhoto, idiota, que tendo passado o ano na flauta posava de coitadinho. Os bichos foram atraídos para o local e as vozes insufladas aumentaram:
– Que absurdo. Como é permitido à formiga, uma toca aquecida e boa alimentação, enquanto o gafanhoto está exposto ao frio e morrendo de fome?
A imprensa escrita, falada e televisada passou a descrever a formiga bela e fofa e o gafanhoto moribundo.
O Leão, como Rei, ordenou aos tamanduás uma operação Saúva. Invadiram o formigueiro e apreenderam todo estoque de folhas verdes da formiga que foi para a cadeia junto com lobos, cobras caninanas, aranhas venenosas, urubus do colarinho branco e outros tantos meliantes.
Tiraram fotos do gafanhoto trêmulo de frio e com sinais de desnutrição.
As imagens dramáticas foram para a televisão. Órgãos internacionais visitaram o país para questionarem a cidadania dos gafanhotos.
A formiga se defendia dizendo que construíra o seu teto e abastecera sua despensa com o suor do seu rosto. De nada adiantou. Foi acusada de haver estocado folhas verdinhas, até no exterior. Multada e condenada a pagar pesado tributo sobre o seu trabalho, faliu por não ter condição de pagamento. O gafanhoto foi incluído na lista dos excluídos e passou a ter vida boa. Invadiu a toca da formiga e lá se acomodou.
Arrasada foi se aconselhar com a comadre lagarta, sensata e conselheira das horas difíceis. Encontrou a amiga acabrunhada.
O que foi comadre?
– Você não sabe? Invadiram a nossa privacidade. Quebraram nosso sigilo. Uns cientistas desocupados descobriram que nós Papilios xuthus temos a faculdade de imitar titica de passarinho e de nos camuflar de folha de árvore para nossa proteção. Agora está tudo perdido, eles identificaram e deram publicidade do hormônio especial que usamos para mudança de aparência.
– O que é verdade, mas ninguém sabia. Era nossa defesa.
É difícil imaginar um disfarce mais eficiente que esse para não virar comida de pássaro.
Pelo menos, quem sabe podemos ajudá-la se tornar irreconhecível quando quiser.
A formiga lhe contou sua história e a lagarta lamentou:
– Você não sabe que nesta terra dos bichos é feio fazer sucesso? Vou pedir para o Tão, meu marido, lhe introduzir um pouco do hormônio mutante.
O que foi feito. Não se sabe o que a formiga deu para o Lagartão em troca de um pouco dessa molécula milagrosa, mas a verdade é que deu certo.
A formiga, vexada e triste com as injustiças nunca mais foi vista. Talvez tenha optado em se transformar em fezes para não ser pisada por mais ninguém.
Dizem também que ela vive por aí camuflada de merda porque tem medo de ser feliz.