João Baptista Galhardo (*)
No início dos anos cinquenta, contando doze ou treze anos de idade eu era uma espécie de quebra galho no Fórum. Funções centradas no 1º Registro de Imóveis, mas nas horas de folga encerava cartórios, lavava os corredores e a escada do prédio. De vez em quando dormia na casa do Juiz ou do Promotor quando as famílias viajavam. Era para tomar conta. Que belo segurança…Certa vez o Promotor da Comarca pediu que eu fosse até a casa dele numa sexta feira à noite. Fazer um bico. Não perguntei sobre a tarefa. Calcei meu sapatão de sola de pneu e às 20h em ponto me apresentei. Morava na Avenida Espanha, entre as ruas três e quatro.
– Vou dar uma festa esta noite. É meu aniversário. Queria que você servisse os convidados. Pega uma bandeja com salgados, sirva primeiro as mulheres que estão na sala. Em seguida os homens que estão lá fora sob a parreira. Depois dos salgados faça uma rodada de bebida para as mulheres e em seguida para os homens.
Desajeitado fui para a cozinha sob a direção de uma doméstica de lenço branco na cabeça. Sobre a mesa salgados e uma peça grande de vidro ou de cristal com uma bebida estranha dentro dela.
A mulher lotou a bandeja com pequenos barcos cheios de maionese com ervilhas por cima. Fiquei sabendo depois que eram barquetes. O que mais se servia. Não tive dúvida, na primeira rodada comi uma bem depressa. Aquela barca de casco duro, levemente mastigada desceu rasgando a garganta.
Quase me afoguei.
Repeti a rodada para os homens e mandei ver nova barquete. Os homens falavam sobre política. Uns elogiavam e outros criticavam Getúlio Vargas.
Comentavam pescarias. E seus desempenhos conjugais. Alguns até extraconjugais. Eu só ouvia. Não tinha que falar nada. Era essa a recomendação do Promotor. Eles podiam roncar papo, pois as mulheres, por certo falando o contrário na sala, não estavam por perto para contestá-los. Um Registrador, muito gordo, fumava cigarro de palha, retirando o fumo de uma bolsinha de borracha. Depois puxava uma bombinha que aspirava para amenizar a sua asma.
A bebida servida em taças fundas, de cristal acredito, era retirada daquele recipiente grande. Era cheirosa. A cozinheira de turbante me disse que se tratava de um tal de ponche.
Assim o revezamento. Barquete neles. Em seguida ponche.
Quando a cozinheira deu uma brecha e sem ninguém por perto tomei num só gole um copo grande daquela bebida. Mais por curiosidade. Gostosa. Geladinha desceu bem. Eu nunca havia colocado na boca uma gota de bebida alcoólica. Numa outra rodada tomei outro. Pensei que fosse como um suco. Dessa vez a cozinheira me flagrou e disse: "menino você está louco! Aí tem gim, conhaque, vinho branco, champanhe.
– Mas está doce.
– É porque tem guaraná, gelo e maçã picada. O cheiro acentuado era gim.
Não demorou muito os convidados se duplicaram. Os olhos ficaram vesgos. Um vigiando o outro. A parreira andou. A bandeja queria pular das minhas mãos. Com umas dez barquetes na barriga e os dois copos duplos de ponche tive ainda lucidez de pedir ao Promotor para ir embora:
– Doutor é tarde. Passa da meia noite. Eu moro longe. Não tem mais ônibus. E o Promotor: "antes de ir coma uma barquete.
– N ã ã ão…obrigado. Fui embora. Vinte quarteirões. A iluminação de rua terminava quatro antes de chegar em casa. Fui pisando em degraus inexistentes. Um guarda noturno (soldado) que me conhecia no bairro, perguntou por que eu estava andando daquele jeito.
– É o sapatão que está machucando.
Chegando a casa minha mãe abriu a porta. Era de tranca. Não tinha trinco. – Mãe o que você está fazendo em pé?.
– Vim abrir a porta pra você.
Nisso ela percebeu qualquer coisa errada.
– Filho você bebeu? – Não bebi mãe. – Bebeu. – Não bebi. E começou chorar: "Dico seu padrinho morreu de tanto beber… agora o meu filho". Exagero, fui dormir. De barriga para cima, eu sentia um tsunami empurrando as barquetes do estômago para a garganta e desta para baixo, navegando naquele líquido viscoso e já azedo. Percebia as ervilhas saltando das barcas e se agarrando nos pedaços de maçã como bóias para não caírem naquela água venenosa que chacoalhava a frota de barcos. E aquele cheiro horrível com retrogosto de gim depilava as narinas com o bafo. Foi a única vez que tomei gim. Nunca mais comi barquete. Não há ácido estomacal suficiente para digerir essas barquinhas servidas em todas as festas. E há até quem suborne garçom para repetir a dose.
Não vou a aniversário ou casamento sem antes tomar em casa um lanche reforçado. Vai que só tem barquete. Tô fora!!!
(*) E-mail: jbgalhardo@uol.com.br