N/A

Continua a invasão dos “malas”

Rosa Godoy (*)

Incrível como a realidade é convergente, no que tange à mesmice dos fatos! Uma noite dessas, em plena languidez morna do sono-vigília, me flagrei a pensar como os homens vêm se tornando “malas” ultimamente. Ou eu estaria mais sensível à chatice deles? Sei lá! Pensa de lá, pensa de cá, no embalo de Verdi, no som do “Va, pensiero, sull’ali doraaate…” (vai pensamento, voa em asas douradas…), consegui esquecer malas, valises, pochettes e necessaires e adormeci, crente que esse era um problema exclusivamente meu.

Qual o quê! Pela manhã, dei de cara de novo com ele, desta feita, na hidroginástica. Regina entrou na água como um furacão, bravíssima e agitada. Mal nos cumprimentou e perguntou:

– Vocês já viram como os homens estão ficando cada dia mais “malas”?

Nem esperou a resposta. “Eu, então, tô azarada… Tenho um marido mala, um cunhado mala e agora até o porteiro do prédio virou mala. Não agüento mais blá blá blá…”. Bastou!, daí para frente (graças a Deus, sem nenhum homem presente) a conversa rolou solta, com todas as mulheres, cerca de dez, de diferentes idades entre 25 e 60 anos, absolutamente concordantes em relação à invasão dos “mala”.

Para os mais desavisados – para os homens que ainda estão me lendo, não para as mulheres porque desconheço alguma que não saiba a definição – “mala” é o condensado de “mala sem alça” e, em se tratando de homens, significa aquele cara chato, egocentrado, que acha que as mulheres é que estão sempre erradas, que são todas bruxas, principalmente a sua (depois de algum tempo juntos, nunca no auge da paixão). Ele, por sua vez, nunca erra (por ser diretamente correlato a algum deus ou semideus, quando não é o próprio); explode a qualquer estímulo por pequeno que seja (é adicto ao velho ditado e franco defensor de “matar passarinho com bala de canhão”). Por conseqüência, emburra por qualquer dois réis, como diria minha avó. Também gosta de fazer charme e invariavelmente recusa-se a ir a festas e comemorações, embora sempre vá. Uma vez lá, insiste em ir embora justamente na melhor hora, pois está cansaaaaaaado. Acha que somos sempre donas da verdade, embora a verdade dele seja sempre, absolutamente sempre, incontestável, nem se discute. Faz birra e se diz cansado de cobrança quando a mulher pergunta onde estava àquela hora da noite. De outra parte, esbraveja ou emburra quando ela não atende o celular (seja a hora que for). Para completar, para o “mala”, “eu te amo, eu te gosto, não vivo sem você” são expressões absolutamente desnecessárias, ultrapassadas e caretas, o mais importante são as demonstrações de afeto (raríssimas, diga-se, porque também encontram-se indexadas no catálogo do desnecessário). Enfim, se somássemos as características dadas pelas mulheres para definir os homens-malas, não haveria papel suficiente para imprimir o texto.

Cessado o parênteses, volto ao meu dia, focado no “homem-mala”. Já estava em casa à noite quando o telefone tocou:

– Tia, posso ir aí conversar um pouco com você?

– Claro, venha jantar, estou sozinha e fazendo aquela sopa de abóbora que você adora.

– Eba! Estou indo.

O assunto da conversa ficou secundário a partir do momento em que o celular dela começou a tocar irritantemente a cada dois minutos. A visita só durou o tempo necessário para uma breve orientação sobre saúde sexual e a sopa ficou na panela. O chato (mala) era o namorado, inconformado porque queria vê-la “naquele mesmo instante”. Como não estava em casa àquela hora??? Carol, de apenas 24 anos, repetiu exatamente as palavras de Regina, 50 (a da piscina), e de todas as demais:

– Ai, tia, não aqüento mais aquele “mala”. Ele me sufoca, quer me controlar o tempo todo blá blá blá…

Ela enfatizou, com o calor da juventude, as mesmas características nominadas pela manhã e que haviam povoado a minha madrugada.

E se alguém pensa que o “mala” só se revela em casa ou nos relacionamentos íntimos, está enganado. Em público, o pressuposto de que eles são o máximo e nós o contrário é exatamente o mesmo, só que escondido debaixo de comentários elogiosos e puxa-saquismos centrados no superficial, na emoção, em detrimento da razão, no supérfluo, em detrimento do essencial. No discurso, somos as sensíveis, as maravilhosas, as que enfeitam e tornam o ambiente agradável etc etc etc. O duro é agüentar o que vem depois e que invariavelmente joga a nossa competência técnica, política ou científica no lixo. Certa vez, estupefata, testemunhei as enfermeiras serem elogiosamente chamadas de “verdadeiros sargentos da saúde”. Leia-se, aquelas que tornam as ordens palatáveis – pela “extrema competência” em lidar com os pacientes e com a equipe multiprofissional (liderada pelo médico, é claro!).

Mas, voltando ao tema, o “mala”, crente que está abafando, adora defender a “igualdade” entre homens e mulheres desde que eles mandem e elas obedeçam – além da inevitável preferência do feminino em detrimento do feminista. Quanto ao último, nem sempre sabem de que se trata, confundindo qualquer expressão de senso comum com movimento social. Outra coisa que eles gostam é de dizer aos quatro ventos que somos nós que mandamos e que eles são apenas pobres coitados submetidos ao nosso poder, ao nosso jugo, à nossa sedução. Ah! E, prá finalizar, o “mala” sempre nos conhece como ninguém…

Prova cabal disto foi a notícia veiculada pela imprensa sobre o clima que predominou na sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) onde a futura presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – a primeira mulher – Ellen Gracie, foi sabatinada pelos senadores presentes. “Malas” incontestes, potenciais ou declaradas, eles esbanjaram “malice”, como se pode ver pelos comentários feitos, independentemente de pertencerem ao rotulado partido de direita ou esquerda. O presidente da CCJ, Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), disse que a ampla aceitação do nome da ministra para o cargo deveu-se “à elegância física e moral, à dignidade e, sobretudo, à competência da ministra”. Pior foi o comentário de Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) que justificou seu profundo conhecimento das mulheres, escudado pela competência médica: “Como ginecologista, aprendi a lidar de perto com as mulheres, a entender muito profundamente a sensibilidade e a alma feminina”. Para Aloísio Mercadante (PT-SP), a ministra não foi participar de um debate ou ser sabatinada, como manda o ritual (isto seria para os homens!), ela foi para ser “merecidamente homenageada” (Folha de São Paulo, quinta-feira, 23/02/2006, p.A-10). Ai, me poupem, senhores!

Toda mulher, pelo menos alguma vez na vida, já trombou ou vai trombar com um “mala”, seja no campo do social, seja no do afetivo. O problema é que nem sempre elas se dão conta disto, ficam deslumbradas com os salamaleques e, ao invés de “malas”, os enxergam como super-homens. O osso fica duro de roer quando passa a paixão, eles perdem a capa, a gentileza e a doçura e se tornam aquilo que a sabedoria primitiva de Dona Rosilda, digna representante das mulheres nascidas e vividas no Vale do Jequitinhonha, definia como marido:

– Ramiro, minha filha, era uma “mala sem alça”, que a gente carregava debaixo do sol do meio dia, com um sapato folgado, com uma pedra dentro! Imaginem só o tamanho e o peso da “mala”…

Por outro lado, tenho certeza de que existem também as “mulheres malas”. Afinal, as santas morreram na fogueira e estão no céu, aqui na terra só sobraram as “normais”. Só que esta é outra história e, se quiserem, eles que escrevam sobre ela. Eu? Nem morta!

(*) É Professora Titular da USP e colaboradora do JA.

Compartilhe :

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Agenda Esportiva

Audiência Pública debaterá regra sobre ano de fabricação de carros de aplicativo

Show nesta sexta-feira no Sesc Araraquara

Espetáculo de teatro neste sábado no Sesc Araraquara

Show neste domingo no Sesc Araraquara

CATEGORIAS